sábado, 4 de janeiro de 2020

Dois papas


Dois papas




         Alguns atores são espetaculares, contudo, não possuem oportunidades para mostrar suas interpretações nos grandes filmes, são relegados a coadjuvantes por não possuírem aparência “comercial”. E mesmo assim alguns, muitos na verdade, arrasam. Neste filme, por melhor que Anthony Hopkins esteja, Jonathan Pryce, um desses atores que conhecemos mais pelos seus papais de coadjuvantes, consegue o feito de ofuscar seu companheiro premiadíssimo. Digo isso por acompanhar os passos de papas com um pouco mais atenção, devido minha vida pregressa...
        
A direção de Fernando Meirelles, com o roteiro de Anthony McCarten, consegue passar bem o embate de duas visões de Igreja-Instituição com todas as licenças poéticas possíveis. Sim, há muita ficção no convívio do então candidato a papa e do papa. Os diálogos captam bem a essência do que acontecia entre os muros católicos. A grande falha foi apenas resvalar nos reais motivos da “renuncia” de Bento. Toca-se vagamente e pouco se percebe se quem estiver assistindo não entender o mínimo de Igreja Católica. O motivo é difícil de se assumir: os escândalos mal resolvidos da pedofilia e a corrupção dentro da cúria. Jogou-se uma culpa no secretário de Bento de quem vazou ao público documentos e cartas comprometedores. A ferida é mais profunda, dolorosa, mundana e antiga do que se quer supor e admitir. Por várias questões, imagino, se fugiu de grandes especulações sobre o assunto. A detentora dos documentos que podiam dar uma luz a tudo tem como regra só liberar essa papelada 50 anos após a morte dos envolvidos diretos, e sim, é a própria Igreja quem faz essas regras sobre seus próprios documentos.
        
Se os realizadores fogem do assunto espinhoso ainda sobra um bom material para se trabalhar, e esse material é real e passível de constatação. De um lado temos Joseph Ratzinger, alemão, duro, antipático e tradicionalista ao extremo que é considerado um intelectual de proporção monumental, mais interessado em condenar doutrinas do que formular teologias, mesmo assim possui um bom número de livros publicados, muitos como papa. Não tem como negar que foi, e é, um dos homens mais brilhantes de sua época. Um homem de escritório. Já, do outro lado, Bergoglio, também inteligente, é mais pastoralista, direto, popularesco. Sua história um tanto controversa é colocada no filme. A época da Ditadura Militar na Argentina que forjou seu modo de ser. Não é de escritório, foi engajado, nem sempre da forma adequada, na história de sua Igreja regional e amargou anos por escolhas equivocadas.
O que talvez o tenha humanizado muito. Então, voltando ao filme, percebam que Pryce consegue captar esse humanismo de forma soberba, Hopkins teria que ser um pouco mais “Hannibal Lecter” para atingir a essência de Bento. Até fiz uma brincadeira no Facebook sobre ele ter interpretado um psicopata antes e agora um psicopapa. Faltou um pouco mais da frieza do personagem anterior. Se algum católico ler isso vai me condenar ao inferno. Nada que uma Confissão ou uma Unção dos Enfermos na hora certa não resolva. O bom de ser católico é isso, sempre há uma forma de escapar do inferno, institucional e licitamente.
        
Não é o melhor filme que se possa querer, embora competente e bem executado. Eu assisti mais com minhas memórias afetivas ligadas e impressionado com a direção que captou bem alguns pontos necessários, mesmo resvalando de leve em outros, como disse acima. “Dois papas” ajuda a entender um pouco o que foi a troca de um conservador para outro menos conservador que deu uma cara de progresso e começou tocar em pontos delicados da Instituição. Já houve uma revolução na Cúria Romana e se hoje um padre, ou mesmo bispo, cometer um ato de pedofilia as medidas são mais enérgicas. Sei de lugares que o padre pode até perder a sua condição sacerdotal. Antes eles eram apenas trocados de paróquia.
E aqui preciso falar da escolha do nome “Francisco”. Se houve um real revolucionário na instituição já estabelecida na idade média esse foi Francisco. Não vou falar muito dele (em algum lugar desse blog tenho uma crônica comentando sobre ele), mas sabe aquela pessoa que não falou quase nada e com ações mostrou o óbvio? Francisco foi esse cara, ele só retomou algo esquecido pela Igreja, a pobreza, da forma mais básica possível, vivendo como um pobre. Escolher ele como patrono através do nome já é revolucionário por si só. A escolha do nome “Bento” foi mais uma continuação da opulência tão execrada pelo silêncio de Francisco, o santo medieval. Ainda há muito que mudar e o atual papa não vai conseguir tudo o que é necessário. Mas é fantástico que ele se mostre humano até ao dar um tapa, recentemente, na mão de uma fiel inconveniente que o tenha puxado e o feito perder a cabeça para no dia seguinte pedir perdão em público, algo não muito comum na figura do Sumo Pontífice e sua infalibilidade papal, Pryce pegou essa humanidade em sua interpretação.  

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