segunda-feira, 26 de maio de 2025

Pecadores - É religiosidade pura

 Pecadores





        Começar com uma coisa óbvia que tem um sentido profundo, sou brasileiro. E isso representa um amálgama cultural complexo e ainda não de todo homogênio. Enquanto umas regiões o povo é menos misturado em outros o povo é mais miscigenado, umas regiões com mais mistura dos povos originários, outras de negros, outras com portugueses e não esqueçamos outros tantos povos do mundo que vieram para cá. Se essa questão de mistura de etnias ainda se encontra em processo uma coisa que já está bem misturada é a religiosidade brasileira. Por mais católico que alguém seja, uma plantinha indígena vai estar lá para um chá ou um banho, por mais evangélico neopentecostal, na hora de arrumar um “perna-de-calça” elas vão lá no terreito escondido, ou ainda, numa questão de iminente de saúde muitos não pensam duas vezes em confrontar sua religião e vai sim buscar ajuda em médium, víamos muito com Chico Xavier e outros arautos da cura medúnica. E nem falo de dinheiro, o que há de gente pedindo para Exu grana e não deveria pois "serve" o Deus Único, depois vão lá jogar pedra em terreiros. E nos sertões e rincões do país, onde por vezes não há médicos? Quem faz as vezes são benzedeiras, xamãs, idosos conhecedores de magias, rezas e ervas. Eu me lembro do meu avô, católico, devoto de N. Sra. Aparecida, de Santa Bárbara e outros que não vou me lembrar, sabia mais de ervas curativas que muitos botânicos. Eu lamento muito na época não aproveitar e pedir para ele me ensinar muitas coisas. As poucas que eu conheço aprendi por “osmose”. Lembro que ele tinha umas sementes “para proteção”, que depois descobri serem elementos poderosos de diversas magias de nossos místicos populares. Sem contar as histórias verídicas do sobrenatual, hoje eu vejo que era a espiritualidade manifestando na vida dele. E por que eu estou falando disso? Porque somos um povo bem misturado nas crendices, cada região com suas peculiaridades mas muitas coisas convergem, se assemelham e, mesmo levando outro nome, ou sendo cristianizado, são nada mais que a espiritualidade brasileira expressa em ritos, ações, liturgias, cantos e crenças. E a falta disso numa produção brasileira começou a me incomodar muito e me dei conta que nas produções hollywoodianas também carecem do mesmo. Entendo que um filme é um recorte determinado para poder se narrar uma história, mas aqui lembro de uma palestra, fico em falta de indicar onde vi pois não lembro, do Denzel Washington dizendo que um filme sobre os negros nos EUA precisa ter a “cultura” negra por trás. Resumidamente ele disse que somente um negro estadunidense sabe algumas coisas próprias da cultura negra estadunidense. Ele até deu o exemplo do pente de ferro quente num domingo de manhã queimando os cabelos com um monte de mulheres, tias, irmãs e crianças antes do culto dominical. Um branco pode até escrever sobre a vida de um negro mas esses detalhes, que devem ser colocados tanto na construção do personagem como no roteiro fazem a diferença, dá verossimilhança, traz vida ao filme, série ou teatro, vai faltar ao branco. Isso para ele é cultura, trazer para a obra coisas que só aquele grupo saberia e teria sensibilidade para retratar. E como falta a cultura da religiosidade em filmes. Quando colocam é um cristianismo fanático a ser combatido ou um satanismo magnânimo que vence tudo. E geralmente num filme de terror sanguinolentos. 




        “Pecadores” é um filme de terror que joga com isso, de ter uma cultura por trás, existe uma pesquisa histórica nas roupas, nos costumes, na religiosidade, aos moldes dos EUA. As três etnias aparecem, e ao contrário daqui que houve uma miscigenação mais intensa, lá não, os negros são segregados ainda, as cidades são separadas, recém libertos eles são perseguidos por leis que os fazem ser presos e voltar aos trabalhos pesados “gratuitos”. Os indígenas, tentam fazer algo, porém sabe que os brancos não querem sua ajuda então eles se retiram da história. E os brancos que, no filme como vampiros são a manifestão da apropriação cultural que incutem aos negros, e outros povos, e detratam esses mesmos povos para manter a falácia da supremacia branca. Vejam o que fizeram com a África até hoje, nações poderosas apagadas, a cultura egípcia espoliada por gregos que se tornaram os “pais” da filosofia. E aqui chega ao que disse pouco acima, a religiosidade nesse filme não está a serviço de causar medo ou de se contrapor aos vampiros. Ela está na caminhada cotidiana, na fé simples de cada personagem. É orgânico, flui dos poros de cada um ali retratado. A melhor cena que mostra isso é quando Sammie (Miles Caton) sem saber que possui um poder sobrenatural de ligar os tempos, presente, passado e futuro ao  rítmo da sua música. Este “dom” é explicado já no começo e percebam, não estou fazendo um resumo do filme pois esse filme não é sobre isso. É sobre a cultura negra americana que foi tanto tempo apagada a ponto de várias coisas não aparecerem nas produções já feitas. As poucas coisas que via da espiritualidade negra que via estava ligada a Nova Orleans e mesmo assim de forma um tanto desrespeitosa e preconceituosa. Tenho a sensação que às vezes alguns personagens só são de determinada etnia para cumprir cotas e isso que o Denzel falou nem é levado em conta pois as ações não condizem com o que deveriam representar. Em “Pecadores” tudo condiz. Tem um casal de chineses que possui um mercadinho de um lado da rua, onde atende negros, aí vemos a câmera atravessar a rua para um outro mercadinho que é deles também, mas esse é para atender brancos, seguindo as regras de segregação. E que delicioso ver a personagem Annie (Wunmi Mosaku) sendo uma mulher fora do padrão, sendo acima do peso, e sensualíssima que ama um dos irmãos gêmeos da história e se comparar com a branca que o outro irmão gosta Mary (Hailee Steinfeld) é de dar pena dessa última, que é uma mulher bonita mas comum. Annie tem os paranauês, sensualidade e tem espiritualidade, ela tem as práticas ancestrais que vai perceber e depois ajudar a combater os perigos. Ela é uma Oxum, se for colocar uma referência nossa. 

        O diretor sabe dessa “cultura” que o Denzel falou, ele é o Ryan Coogler e fez filmes com esse naipe de profundiade. Só vou citar um filme que ele esteve à frente: “Pantera Negra”.  Se a cultura Woke andou derrapando, e fez isso pois muitos diretores e roteiristas não fizeram o dever de casa direito, Coogler sabe o que está fazendo e manda muito bem. Ele é uma aula de história da negritude estadunidense e o que é melhor, disfarçada em filme de suspense terror e ação, neste caso. O que menos importa é o filme ser de vampiro, tudo é pano de fundo para algo tão mais profundo e necessário que me arrepia só de lembrar do filme.  Como faz um tempo que o filme estreou e não ganho para comentar filmes (ainda) não vou fazer resuminho não. Só essa resenha comentando e recomendo, assistam. Vale cada minuto que você fica diante da tela. E se puder dar uma dica, caso não conheça muito, tente perceber tudo, tudo mesmo, e saiba que nada ali está gratuitamente, todo adereço, toda ação, toda roupa, toda figuração, até os nomes dos dois gêmeos, ambos interpretados pelo Michael B. Jordan, têm sentido. Leia um pouco sobre as Leis de Jim Crow, isso também ajuda. E mesmo que você não queira se aprofundar, só ficar na camada superficial, é um ótimo filme de ação/terror. 


sábado, 17 de maio de 2025

A Maravilhosa Sra. Maisel - M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-A mesmo!

 A Maravilhosa Sra. Maisel




 

 

        Se existe um grupo étnico capaz de “criar uma narrativa” cativante e cheia de energia que sobrepuja os tempos são os judeus. Donos de uma história rica, complexa, turbulenta e, no momento atual, diplomaticamente delicada, estão num patamar cultural grandioso. Pelo menos detêm o domínio da grande máquina Hollywood. Chegaram lá quando tudo era mato, e construíram, com nomes variados, as bases e depois o edifício inteiro da indústria de entretenimento estadunidense. E não é só nos filmes, é no teatro, na Broadway e off-Broadway, na comédia Stand-up, na música, e qualquer, repetindo a expressão acima citada acima em aspas, “criação de narrativa” que eles são bons, eles também são ótimos em vender essas ideias. Comerciantes natos conseguem nos convencer de que seus produtos são bons. Como tudo em um grande centro comercial temos que sempre analisar bem o que estamos adquirindo, mas o papel deles, produzir e vender, eles desempenham com maestria.

        E “Maravilhosa Sra. Maisel” é um produto muito bem feito. Eu não conheço muitos judeus, a não ser pela tela e pelo filtro da arte. Tive contato com um amigo que era judeu, e pelo que tenho dele eu tento fazer uma causa de juízo sobre a cultura que “Maravilhosa Sra. Maisel” retrata. E, sim, é fantástico perceber que as duas narrativas, do meu amigo e da série, convergem. Obviamente que meu amigo é brasileiro e a série se passa em Manhattan então algumas divergências e especificidades culturais podem ocorrer, mas pelo que meu amigo falava da família, das relações religiosas e da rede de apoio que havia “Maravilhosa Sra. Maisel” está similar a tudo que ele relatava. Eu, meio vira-latas do interior de São Paulo, sem um senso étnico tão definido, pois minhas origens se perderam na desimportância da vivência histórica que um brasileito tem, ando resgatando algumas coisa hoje em dia, não acompanhava aquela mixórdia de situações que não havia na minha família que meu amigo narrava. Simplesmente se alguém brigava na minha família paravam de se conversar e o tempo resolvia, na do meu amigo, ninguém parava de conversar mas ninguém esquecia o que cada um tinha feito e, segundo ele, tudo era remoído incessantemente em todas as oportunidades possíveis, e mesmo se odiando ninguém deixava de falar com ninguém. E, aqui não vou julgar quem tem razão, são constextos culturais distintos. “Afinal quem somos nós para julgar....” (Só lembrando a fatídica frase do senso cumum que justamente dá aval a começar a tacar o pau em quem não está perto para se defender)

        A série é sobre isso, vivência cultural de um grupo étnico bem definido. Nunca tinha visto uma produção tão voltada ao universo judeu, além daquelas sobre o holocausto, o que é um alívio, pois, por mais traumático que tenha sido os eventos das Grandes Guerras é bom saber outros meandros de um grupo tão importante na nossa história ocidental. Nossa personagem título a Sra. Maisel é uma judia casada, espirituosa, cheia de personalidade e com uma veia cômica que vai definir toda a série. O marido menos interessante porém esforçado não consegue lidar com uma aptidão que surge na vida da Sra. Maisel, sua esposa, a veia cômica que se manifesta numa apresentação de Stand-up e devido a isso ele termina o casamento e a mulher fica livre para iniciar sua carreira. Porém nada é simples e tranquilo, ser comediante Stand-up não é bem visto para homens que por uma piada podiam ser presos, estamos pelos anos de 1958-1959, imagine para mulheres, e divorciadas, apesar da situação não estar resolvida no papel. Então a empreitada de Miriam, a Sra. Maisel, interpretada brilhantemente pela Rachel Brosnahan não vai ser fácil, no meio das apresentações, quem percebe a qualidade do humor de Miriam é Susie (Alex Borstein) que se torna sua amiga e empresária. Deliciosamente masculinizada ela figura cenas hilárias não só em contraste com a feminilidade delicada de Miriam, mas também, para fazer acontecer o plano de colocar sua comediante nos palcos e ambas buscarem sucesso, mesmo que para isso ela mesma tenha que requebrar numa dança supostamente brasileira, na segunda temporada para se passar por funcionária do resort que a família de Míriam está passando férias. Os pais de Míriam são deliciosos de se ver, a mãe toda afetada, feita pela ótima Marin Hinkle, e o pai, Tony Shalhoub, um professor de física metódico figuram cenas hilárias de casal. Tudo na série funciona, contudo uma coisa é absurda, a direção de arte. Pense na perfeição da reprodução de época, de móveis, a lugares, roupas. É um exercício de pesquisa hercúleo. E como tem locações para serem reproduzidas, essa série não saiu barata. Nem tinha como. A qualidade do roteiro, reproduzindo a comédia e os trejeitos ingênuos da época acabam por dar mais luz ao todo.

        Eu ainda estou finalizando a segunda temporada de cinco. Cada temporada possui de 8 a 10 episódios com seus 50 minutos, com variações. Não é uma série pesada, mesmo sendo um pouco complexa por haver muitos personagens e subtramas. É divertida de se seguir. E é impossível quem goste de moda não admirar os vestidos de Miriam, um mais lindo que o outro, mesmo os da mãe dela e de outras personagens, são espetáculos de uma época dourada de ingenuidade e esperança que os estadunidenses viviam. Hoje, com as produções focadas em terror, suspense, ficção científica com reviravoltas o tempo todo nos deixando em pequenas crises existenciais “Maravilhosa Sra. Maisel” é um sopro diferente de tudo que está no mercado. Algo para aliviar o peso dos tempos difíceis que vivemos. “Bora” assistir o restante!