Pecadores
Começar com uma coisa óbvia que tem um sentido profundo, sou brasileiro. E isso representa um amálgama cultural complexo e ainda não de todo homogênio. Enquanto umas regiões o povo é menos misturado em outros o povo é mais miscigenado, umas regiões com mais mistura dos povos originários, outras de negros, outras com portugueses e não esqueçamos outros tantos povos do mundo que vieram para cá. Se essa questão de mistura de etnias ainda se encontra em processo uma coisa que já está bem misturada é a religiosidade brasileira. Por mais católico que alguém seja, uma plantinha indígena vai estar lá para um chá ou um banho, por mais evangélico neopentecostal, na hora de arrumar um “perna-de-calça” elas vão lá no terreito escondido, ou ainda, numa questão de iminente de saúde muitos não pensam duas vezes em confrontar sua religião e vai sim buscar ajuda em médium, víamos muito com Chico Xavier e outros arautos da cura medúnica. E nem falo de dinheiro, o que há de gente pedindo para Exu grana e não deveria pois "serve" o Deus Único, depois vão lá jogar pedra em terreiros. E nos sertões e rincões do país, onde por vezes não há médicos? Quem faz as vezes são benzedeiras, xamãs, idosos conhecedores de magias, rezas e ervas. Eu me lembro do meu avô, católico, devoto de N. Sra. Aparecida, de Santa Bárbara e outros que não vou me lembrar, sabia mais de ervas curativas que muitos botânicos. Eu lamento muito na época não aproveitar e pedir para ele me ensinar muitas coisas. As poucas que eu conheço aprendi por “osmose”. Lembro que ele tinha umas sementes “para proteção”, que depois descobri serem elementos poderosos de diversas magias de nossos místicos populares. Sem contar as histórias verídicas do sobrenatual, hoje eu vejo que era a espiritualidade manifestando na vida dele. E por que eu estou falando disso? Porque somos um povo bem misturado nas crendices, cada região com suas peculiaridades mas muitas coisas convergem, se assemelham e, mesmo levando outro nome, ou sendo cristianizado, são nada mais que a espiritualidade brasileira expressa em ritos, ações, liturgias, cantos e crenças. E a falta disso numa produção brasileira começou a me incomodar muito e me dei conta que nas produções hollywoodianas também carecem do mesmo. Entendo que um filme é um recorte determinado para poder se narrar uma história, mas aqui lembro de uma palestra, fico em falta de indicar onde vi pois não lembro, do Denzel Washington dizendo que um filme sobre os negros nos EUA precisa ter a “cultura” negra por trás. Resumidamente ele disse que somente um negro estadunidense sabe algumas coisas próprias da cultura negra estadunidense. Ele até deu o exemplo do pente de ferro quente num domingo de manhã queimando os cabelos com um monte de mulheres, tias, irmãs e crianças antes do culto dominical. Um branco pode até escrever sobre a vida de um negro mas esses detalhes, que devem ser colocados tanto na construção do personagem como no roteiro fazem a diferença, dá verossimilhança, traz vida ao filme, série ou teatro, vai faltar ao branco. Isso para ele é cultura, trazer para a obra coisas que só aquele grupo saberia e teria sensibilidade para retratar. E como falta a cultura da religiosidade em filmes. Quando colocam é um cristianismo fanático a ser combatido ou um satanismo magnânimo que vence tudo. E geralmente num filme de terror sanguinolentos.
“Pecadores” é um filme de terror que joga com isso, de ter uma cultura por trás, existe uma pesquisa histórica nas roupas, nos costumes, na religiosidade, aos moldes dos EUA. As três etnias aparecem, e ao contrário daqui que houve uma miscigenação mais intensa, lá não, os negros são segregados ainda, as cidades são separadas, recém libertos eles são perseguidos por leis que os fazem ser presos e voltar aos trabalhos pesados “gratuitos”. Os indígenas, tentam fazer algo, porém sabe que os brancos não querem sua ajuda então eles se retiram da história. E os brancos que, no filme como vampiros são a manifestão da apropriação cultural que incutem aos negros, e outros povos, e detratam esses mesmos povos para manter a falácia da supremacia branca. Vejam o que fizeram com a África até hoje, nações poderosas apagadas, a cultura egípcia espoliada por gregos que se tornaram os “pais” da filosofia. E aqui chega ao que disse pouco acima, a religiosidade nesse filme não está a serviço de causar medo ou de se contrapor aos vampiros. Ela está na caminhada cotidiana, na fé simples de cada personagem. É orgânico, flui dos poros de cada um ali retratado. A melhor cena que mostra isso é quando Sammie (Miles Caton) sem saber que possui um poder sobrenatural de ligar os tempos, presente, passado e futuro ao rítmo da sua música. Este “dom” é explicado já no começo e percebam, não estou fazendo um resumo do filme pois esse filme não é sobre isso. É sobre a cultura negra americana que foi tanto tempo apagada a ponto de várias coisas não aparecerem nas produções já feitas. As poucas coisas que via da espiritualidade negra que via estava ligada a Nova Orleans e mesmo assim de forma um tanto desrespeitosa e preconceituosa. Tenho a sensação que às vezes alguns personagens só são de determinada etnia para cumprir cotas e isso que o Denzel falou nem é levado em conta pois as ações não condizem com o que deveriam representar. Em “Pecadores” tudo condiz. Tem um casal de chineses que possui um mercadinho de um lado da rua, onde atende negros, aí vemos a câmera atravessar a rua para um outro mercadinho que é deles também, mas esse é para atender brancos, seguindo as regras de segregação. E que delicioso ver a personagem Annie (Wunmi Mosaku) sendo uma mulher fora do padrão, sendo acima do peso, e sensualíssima que ama um dos irmãos gêmeos da história e se comparar com a branca que o outro irmão gosta Mary (Hailee Steinfeld) é de dar pena dessa última, que é uma mulher bonita mas comum. Annie tem os paranauês, sensualidade e tem espiritualidade, ela tem as práticas ancestrais que vai perceber e depois ajudar a combater os perigos. Ela é uma Oxum, se for colocar uma referência nossa.
O diretor sabe dessa “cultura” que o Denzel falou, ele é o Ryan Coogler e fez filmes com esse naipe de profundiade. Só vou citar um filme que ele esteve à frente: “Pantera Negra”. Se a cultura Woke andou derrapando, e fez isso pois muitos diretores e roteiristas não fizeram o dever de casa direito, Coogler sabe o que está fazendo e manda muito bem. Ele é uma aula de história da negritude estadunidense e o que é melhor, disfarçada em filme de suspense terror e ação, neste caso. O que menos importa é o filme ser de vampiro, tudo é pano de fundo para algo tão mais profundo e necessário que me arrepia só de lembrar do filme. Como faz um tempo que o filme estreou e não ganho para comentar filmes (ainda) não vou fazer resuminho não. Só essa resenha comentando e recomendo, assistam. Vale cada minuto que você fica diante da tela. E se puder dar uma dica, caso não conheça muito, tente perceber tudo, tudo mesmo, e saiba que nada ali está gratuitamente, todo adereço, toda ação, toda roupa, toda figuração, até os nomes dos dois gêmeos, ambos interpretados pelo Michael B. Jordan, têm sentido. Leia um pouco sobre as Leis de Jim Crow, isso também ajuda. E mesmo que você não queira se aprofundar, só ficar na camada superficial, é um ótimo filme de ação/terror.