Mãe!
Confesso que tinha escrito uma coisa
mais suntuosa e pedante e de última hora resolvi reescrever.
Gostei do filme. E ouvi o buchicho da
plateia no cinema e percebi que alguns que não sabiam o que expressar outros
simplesmente detestaram. E uma situação me chamou atenção. Ao meu lado no
cinema uma garota com deus 18(?) anos e sua namoradinha se contorciam, bufavam,
faziam muxoxos de indignação, sofreram com as cenas o tempo todo e ao fim uma
solta “Eles gastam dinheiro com cada coisa”. Garanto que elas sentiram mais o
filme que eu. E não perceberam que as emoções que sentiram foram alcançadass
pelas intenções do diretor e roteirista Darren Aronofsky. Por vezes esquecemos
que o cinema deve nos direcionar a uma emoção, ou várias. Queremos histórias
redondas com começo, meio e fim e fáceis de entender. E “Mãe!” tem essa
estrutura. Porém, é uma grande alegoria ou metáfora. Elementos bíblicos são
colocados diante de nossos olhos. E o obvio não aparece pelo menos até metade
do filme.
Particularmente fiquei muito intrigado
tentando entender e captar as metáforas. E ao mesmo tempo instigado em tentar
entender a relação da personagem de Jennifer Lawrence com o de Javier Bardem.
Do meio em diante é mais fácil. Antes, porém, tudo é muito confuso, e isso não
é ruim.
A superfície da história é de um casal
que mora numa casa afastada da cidade e o dia passa tranquilamente. A mulher é
quem restaurou a casa sozinha depois de um incêndio. Apesar de não estar completa,
as finalizações estão em andamento. E num determinado momento chega um homem
estranho, Ed Harris, e logo em seguida, sua esposa, Michelle Pfeiffer e consigo
um emaranhado de acontecimentos aonde toda a paz vai embora e a “Mãe”
desamparada é vilipendiada de várias formas. Até o desfecho onde não aceitando
mais os maltratos, vai até as últimas consequências. Não ouso escrever mais que
isso, seria spoilers.
Tudo correria numa estranheza não fosse
o que está no subtexto. Obviamente que a relação do casal é Deus/Natureza ou
ainda o Divino feminino que é relegado e enclausurado pelo patriarcalismo. O
personagem “Ele” chama o tempo toda a “Mãe” de “minha deusa”. A divindade
masculina não cria do nada. Precisa do amor da divindade feminina, ou da
Natureza. E esta não é tão complacente com os seres humanos que acabam por
abusar de sua hospitalidade. Nítida referência de como destruímos tudo o que a
Mãe Natureza levou milhares de anos para construir.
O casal que parece primeiro
é Adão e Eva. Perceba que em um momento o homem está mal no banheiro e há uma
ferida em sua costela e é somente depois disso, no dia seguinte, que sua esposa
chega. E com eles o drama e a tragédia de seus dois filhos, um “Abel e Caim”. E
a partir disso chegam mais pessoas e todos com tanta falta de respeito pela
dona da casa que num acidente, que remete ao dilúvio bíblico, ela enxota todos
de lá. Novamente a casa fica calma e tudo parece ficar bem. Até que a Mãe fica
gravida e seu esposo tem uma nova inspiração para um poema, ele é escritor. Ou podemos
antever o Antigo Testamento, o primeiro “sucesso” e agora ele se inspira para
escrever o Novo Testamento.
E o filho aparece, que mais que depressa a figura
do marido/Deus entrega a uma turba de pessoas que invadiram a casa com o
intuito de primeiro admirar seu trabalho e depois começam a destruir tudo que
há por perto, em função da adoração que eles têm pelo marido escritor, para
desespero da Mãe. Destroem sob a complacência do marido tudo o que há na casa e
o filho que a Mãe acabou de parir é entregue ao grupo raivoso. Uma cena
dantesca, um atordoante desenrolar de acontecimentos que transformam a casa num
campo de batalha, uma miscelânea de situações simbólicas que acabam num nefasto
banquete em que pedaços do recém-nascido é dado como hóstia numa missa. Tudo
tem um motivo, tudo tem uma explicação. E fica uma pergunta: o que estamos
fazendo com nossa casa por nossa divindade permitir?
As atuações são instigantes. A
passividade indignada da Mãe, Lawrence, que é desrespeitada o tempo todo, o que
nos causa um grande incômodo, e a complacência com os convidados folgados que o
marido, Bardem, demonstra, que nos deixa mais incomodados ainda, nos leva ao
pilar de sustentação do filme. Ambos arrasam com suas camadas interpretativas.
Quando o homem, Harris, e a mulher, Pfeiffer, chegam vemos que temos monstros
em tela. Há tempos que não via uma Michelle Pfeiffer tão bem em um papel quanto
está neste filme. É maldosa, sensual, mesquinha e parece ter rancor da Mãe.
Sempre achei que ela nunca foi valorizada como
deveria. E o mesmo para Harris. Se mostra frágil e debilitado no ponto certo. O
roteiro é de uma consistência bem interessante, mesmo que nos deixe com pontos
cegos por tempo demais. E o melhor, a fotografia é bem bonita, estranhamente
realista e limpa. Lawrence nunca está descabelada ou desarrumada, pelo menos
antes do desfecho. Sua pele sempre perfeita, seu rosto sem vincos de idade, é
uma bela personificação da divindade feminina. Já Javier é grosseirão, mais
velho e rude, um homem que não liga para a esposa que tem. Sabe que se essa for
embora, apesar de nunca permitir que saia de casa, ele consegue outra. Então
aproveita tudo o que ela pode dar, tudo mesmo, até a última fagulha de amor.
Como vi no cinema, muitos não entenderão
outros não gostarão, ou os dois. Não é um filme fácil, não é um filme para o
público médio. Apesar de ter ido uma semana depois da estreia e o cinema estar
lotado no último horário da noite. Eu gostei do filme e muito. Vi um lirismo
difícil de alcançar e, apesar das situações angustiantes, tudo traz uma motivação.
Há tensão mas o filme não é terror nem suspense como o classificaram. Ele tem
mais sentido que muitos outros filmes de bilheterias grandiosas e roteiros
mastigados dos últimos meses.
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