Stranger Things 5 – Volume 1: Todo abusado vira um abusador?
Eu assisti Stranger Things 5 e nem vou comentar essa estratégia de nos fazer esperar três anos e ainda dividir em três estreias com quatro episódios no dia 26 de novembro, três episódios no dia 25 de dezembro e um episódio no dia 31 de dezembro. Eu vou surtar. Os quatro primeiros episódios assistidos entre sexta e sábado e o que eu posso dizer? Foi foda!!! Eu estava meio desconectado da série — quem diria que esperar tanto tempo afetaria meu interesse — e ando um pouco disperso mesmo por questões pessoais. Não está fácil umas coisas aqui... Enfim, eu achei a história um pouco arrastada no primeiro e segundo episódios, mas aí que mora o pulo do gato dos Irmãos Duffer. Eles prepararam a arapuca e esperaram a presa cair. E caímos nos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, literalmente. E a pancada foi tão forte que passei o domingo cuidando dela e vendo que não fui o único a receber bem no meio da fuça. É incrível como um assunto se torna viral e os algoritmos, que não são bobos, já te bombardeiam com muita coisa sobre o tema. Apesar de que, desde a estreia, eu pererequei para não assistir nenhum spoiler sem querer antes. E o povo, na ânsia de uma curtida ou like, tá desesperado, não respeitando e contando tudo. Todo mundo quer pegar o hype do momento e vira um Deus-nos-acuda. Olha, foi difícil, mas consegui chegar até sábado sem saber de nada.
Temos ótimos momentos com praticamente todos os queridos personagens que já acompanhamos, mas a série dá espaço para a Holly Wheeler (Nell Fisher), que resgata a infância, pois os demais personagens já são adolescentes, e temos também um personagem deliciosamente engraçado e de boca suja, o Derek (Jake Connelly), que é visivelmente — ou não — inspirado em Eric Cartman de South Park; até o nome tem som parecido. Tirando esses rostinhos mais infantis, resgatam a Erica Sinclair (Priah Ferguson) numa cena psicopata que somente ela poderia fazer e mais ninguém. E temos o que temos para não te entregar spoilers. As redes sociais estão inundadas de “Running Up That Hill (A Deal With God)”, da Kate Bush, com cenas e mais cenas de tudo que se pode imaginar. Eu, que só tenho Facebook e Instagram, passei o dia vendo comentários, spoilers, críticas, teorias e elaborações mentais por causa do fim épico e maravilhoso, que entregou um fan service que todo mundo precisava. Como toda a série foi destrinchada por influenciadores, críticos, amadores ou profissionais, que são muito mais gabaritados que eu para isso, eu vou falar algo que acho interessante abordar. Talvez, a partir deste momento, haja um spoiler ou outro, de forma indireta ou mesmo direta. E eu, neste momento, volto à questão que coloquei no título: “Todo abusado vira um abusador?” E vou tocar também em assuntos delicados e sensíveis e tentarei ser o mais respeitoso e cuidadoso possível. Se eu errar ou pesar a mão ou cometer algum equívoco desmedido, me apontem — seja nos comentários, seja por e-mail.
“Todo abusado vira um abusador?”
Eu acompanho as produções estadunidenses desde que me entendo por gente. E entre uma faculdade e outra eu me inteirei de assuntos como Filosofia, Psicologia, Mitologia, Análise do Discurso, Literatura, clássicos de vários tempos da literatura e do entretenimento, teorias de escrita, Jornada do Herói, entre outras coisas. E o assunto da criança sendo de alguma forma assediada volta com muita frequência nas grandes produções. Eu, quando assisti pela primeira vez A Hora do Pesadelo com meus oito anos, não percebi que o Freddy Krueger era um pedófilo que voltava para pegar as crianças — já crescidas — que não conseguiu. Eu nem sabia que era um pedófilo e muito menos que isso existia e era errado. E a história se repete em inúmeros filmes e séries de forma clara ou com alguma alegoria: It – A Coisa é uma delas, temos Monstros S.A., que brinca com a questão, e agora Stranger Things, que é o meu foco no momento.
No começo da primeira temporada nada ficou muito claro. E, pelo que sei, os Duffer não tinham planejado alguns arcos e personagens, então fizeram ajustes de acordo com a carta branca que receberam já na primeira temporada. E, sem entregar muito, nesta quinta temporada precisaram filmar um encontro do Will com o Vecna (Jamie Campbell Bower). E é nessa cena que vemos claramente um abuso acontecendo. Se a série joga para a ficção e fantasia, nós percebemos o simbolismo direto com um membro fálico do Vecna sendo colocado na boca do Will. É algo que pode passar despercebido para quem não se atenta muito ou para quem realmente não consegue fazer uma leitura das alegorias e símbolos presentes na produção. São muitas camadas, e muitos não descem muito fundo em suas percepções. E a grande parte dos personagens tem arcos de histórias muito ricos e muito elaborados. E o que mais me chamou atenção é o arco do Will, que atingiu seu ápice com o quarto episódio dessa quinta temporada. Todo o mais que acontecer é consequência, ou seja, o arco está completo em sua essência. A série começou com ele sendo sequestrado. É o desaparecimento de uma criança frágil em uma situação que nós mesmos vamos descobrir juntos com os demais personagens. E viajamos no tempo para uma época em que muitos eram crianças. Eu mesmo teria meus cinco anos quando tudo começa lá em Hawkins. Tudo é muito familiar — salvo as diferenças culturais — é fácil a identificação com os personagens e com a época. O arco do Will é um arco de superação de um abuso. Ele não só estava perdido no Mundo Invertido; ele estava sendo perseguido e foi capturado pelo Vecna (que ainda podia não existir, mas foi construída sua história para ficar coesa com a narrativa). O próprio Vecna, enquanto ainda era Henry Creel (Jamie Campbell Bower), tinha sido vítima de algo parecido, sendo seu algoz o Devorador de Mentes. É muito significativo que, ao perseguir duas personagens por suas memórias, em outro momento, o Henry não entra numa caverna que é a manifestação do lugar onde ele encontrou um portal para a dimensão do Devorador de Mentes e foi totalmente transformado, sendo mais uma mente submissa dentro do que viria a ser a Mente Colmeia. Para nossa análise, temos uma criança que foi profundamente abusada, que se transformou em outra coisa. E essa criança ainda vai ter suas vivências, que a colocam em um projeto governamental onde ela tem acesso — já adulta — a crianças com poderes psíquicos, e isso leva ao embate com a Eleven (Millie Bobby Brown), que o leva a se transformar no monstro Vecna. É aí que temos uma percepção errada: ele já era um monstro. Suas escolhas, suas vivências e, principalmente, a submissão ao Devorador o fizeram assim. Ele ainda não tinha a forma física que vemos depois. E não é uma coisa só: o mal em si não estava em Henry. Ele tinha uma influência, mas não tinha apoio mais sólido. Will, além de uma mãe que não mede esforços e um irmão protetor, tem amizades. E o Henry, isolado, se perde em seus traumas e, sem apoio e acompanhamento, vira um abusador. Como disse, o Will é abusado pelo agora não mais Henry, e sim Vecna, e poderia ter o mesmo destino. A beleza — ou horror — da existência humana está aqui: não somos iguais e, por isso, reagimos de forma diferente a um acontecimento que tenha sido igual ou similar ao de outra pessoa. São tantas variantes nessa loteria humana que nenhum resultado é previsível. Apesar de alguns dados comportamentais serem possíveis de medir, as nuances de escolhas, atitudes, vivências e percepções íntimas são tão emaranhadas e complexas que muitas coisas dependem de tantas outras que beira o esotérico e o místico, mas não é. Temos o que seremos no futuro determinado ou somos livres para escolher o que quisermos ser? Longe de uma resposta rasa ou simples. Muita coisa pode influenciar qualquer resposta: misticismo de um religioso? Genes? O meio social que a pessoa vive? Temperamento e caráter? Personalidade? Will tinha sua sensibilidade extrema que o fazia mais humano que o Henry e, por mais frágil que aparentasse ser, foi uma criança forte o suficiente para sobreviver no Mundo Invertido. O que não é pouco. E quando saiu — como disse um pouco acima — ele tinha uma mãe amorosa o procurando, com seu irmão e amigos desesperados para achá-lo. Will tinha tudo para virar um monstro. O trauma o arrebentou por dentro; ele passou da segunda à quarta temporada lidando com as consequências do que foi obrigado a vivenciar e esse medo o paralisava de viver sua potencialidade como uma pessoa completa de si mesmo, capaz de se transformar e crescer. Ele não é definido pelo trauma que sofreu, mas ele tira força do que viveu para superar o que é possível desse trauma e ser forte para assumir que ele — e somente ele — pode ser: protagonista de sua história. É tocante como, em uma comparação direta, temos o Vecna que é o adulto que rouba a inocência de uma criança, pois sua própria inocência foi corrompida, e o Mike (Finn Wolfhard), que é justamente a vivência afetiva da infância na memória do Will. Toda criança tem suas descobertas e cada uma vai ter experiências de acordo com sua cultura sobre amar outra pessoa. E isso é construído nas relações com todos que a cercam. E o Will já se sentia deslocado, mas o Mike o “chama” para ser seu amigo. Ambos iniciam sua jornada de afeto. Até então, a estranheza do Will não era bem entendida por ser uma criança e, conforme se torna adolescente, ele nutre esse afeto com algo mais íntimo. Sua sexualidade aflora mais evidente que nunca, e aquela criança que quis ser seu amigo e foi a razão do afeto que ele pôde exercitar como criança agora se confunde na profusão de emoções que os novos sentimentos — impulsionados pelos hormônios da idade — o bombardeiam. Will se retrai. Os traumas ainda ressoam negativamente dentro de si. E o Mike não retribui amor; aparentemente é um garoto heterossexual, mas ainda assim dá muito afeto a ele e a todos os demais. Mike é o garoto desengonçado que é puro afeto com seus amigos. A comparação com o Vecna é que este tenta roubar o que há de mais puro em uma criança, enquanto Mike dá o que uma criança precisa e tem de mais puro: o amor afetivo e totalmente inocente da amizade, que se manifesta em querer estar junto, brincar junto e viver o ser criança como criança. O horror do abuso está aí: tirar da criança o ser criança e impor — usando um termo que tivemos muito contato há uns meses — uma adultização antes da hora. A sensibilidade do Will não permite que ele se submeta. Porém, a descoberta de si mesmo como gay o faz ficar mais inseguro devido a pressão social que exite e ele coloca em Mike a responsabilidade de sua felicidade. E o Mike — nem ninguém — pode dar felicidade a alguém. Quando Will, pressionado pela circunstância do perigo que todos ali ao seu redor enfrentam no fim do quarto episódio da quinta temporada, precisa encontrar a força que sempre teve e, com essa força, usar tudo o que pode contra os inimigos iminentes. E quem disse que o amor não salva? Não é o amor erótico que seus instintos e hormônios em ebulição impulsionam e quer o Vecna é uma alegoria deturpada dele; é o amor subestimado da amizade e da família. Vecna não tinha isso e se perdeu em sua desumanidade, tornando-se um monstro retorcido. Will estende a mão e aceita o que tem dentro de si mesmo e percebe que não é o Mike que vai deixá-lo feliz: é ele mesmo, responsável por sua vida, seu crescimento, sua aprendizagem e sua aceitação. Will, por um abuso, recebe a mesma coisa que Henry recebeu. Ambos têm um vínculo tão íntimo que Will consegue acessar os poderes de Vecna e os usa não para perpetuar o ciclo de abuso, mas para ajudar quem poderá se tornar vítima das escolhas depravadas de Vecna. Will não se torna um abusador. Ele é o mais forte de todos os personagens e tem um arco de amadurecimento e crescimento fantástico.
E é por isso que vale muito a pena assistir Stranger Things. Não faço ideia do que acontecerá nos próximos episódios, mas o Will já está salvo. Pelo menos a criança interior dele está acolhida e não se perdeu no poço de podridão que a alma humana pode se tornar. Já o personagem, só saberemos — como te odeio, irmãos Duffer, por me fazer esperar — no Ano-Novo...

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