terça-feira, 25 de novembro de 2025

Tremembé – Entre crimes e celebridades

 




Tremembé – Entre crimes e celebridades


            Tudo isso começa com Ulisses Campbell, um repórter focado no mundo do crime brasileiro. Natural de Belém (PA), trabalhou em inúmeros jornais e revistas impressas e ganhou alguns prêmios por suas reportagens. Fez coberturas de temas espinhosos como prostituição, máfias e crimes escrabosos. Acompanhou casos que escandalizaram o Brasil, como o do Maníaco do Parque, o crime dos irmãos Cravinhos e Suzane von Richthofen, o caso de Elize Matsunaga e seu marido, o rico herdeiro da empresa de produtos alimentícios Yoki, e, mais recentemente, o caso de Isabella Nardoni, seu pai Alexandre Nardoni e Carolina Jatobá, sua madrasta. Um dos mais recentes — que não está na série, mas virou livro — é o da pastora evangélica Flor de Lis. Um estrangeiro teria que dar um Google para entender quem são essas pessoas. Um brasileiro? Não só sabemos como muitos acompanharam, virou assunto comum; humoristas e o público faziam e fazem piadas com todos, existem memes, viram referência em várias situações. E tudo isso se deve não só ao peso criminal que cada caso escabroso carrega, mas ao sensacionalismo típico com que jornalistas trataram esses episódios. E Ulisses é um deles. Depois de anos acompanhando esses casos, ele coletou muita informação e resolveu lançar vários livros sobre os que o “tocaram mais no coração” — e que, certamente, teriam mais apelo popular e boas vendas. Depois de relatar jornalisticamente algumas dessas figuras criminais, ele escreveu Tremembé: o presídio dos famosos, livro que deu base para a série Tremembé, do Prime Video, que pretende ser um true crime brasileiro, porém com uma boa pincelada dramática. Segundo entrevistas que assisti, Ulisses se baseou nas sentenças, nos laudos psicológicos, em depoimentos e provas — como cartas trocadas entre os presos, entre outras coisas. Ele também ajuda no roteiro da série, que conta com cinco episódios de cerca de cinquenta minutos a uma hora, e já parece ter confirmada uma segunda temporada, inclusive com um comercial antecipando a chegada de um preso: o jogador de futebol Robinho.

            Vou supor que alguém não saiba do que se trata, mas o presídio de Tremembé tem fama de ser uma cadeia para presos “ilustres” ou ricos, por questões de segurança. Em certo momento de suas respectivas penas, alguns desses presos famosos acabaram se encontrando por lá. A série não tem um arco narrativo; acaba sendo uma crônica criminal sobre alguns conflitos e dificuldades enfrentados por esses detentos retratados. Mas ela não se propõe a ser crítica nem a suscitar reflexões: apenas apresenta os casos, algumas interações entre os presos e recria os crimes em analepse — e eu nem conhecia essa palavra, é o termo técnico e literário para flashback. Vamos valorizar nossa língua portuguesa, que é tão bela e tem palavra para praticamente tudo... Depois desse ataque de pedantismo, retorno ao que estava escrevendo: a série é exatamente o que se propõe a ser, crônicas criminais roteirizadas para contar causos e fofocas sem aprofundar em nada. Além dos casos notórios, temos personagens desconhecidos do grande público, mas que, por estarem lá e interagirem com os demais, foram colocados na trama para encorpar o roteiro.

            Primeiro: este que vos escreve, por coincidência, trabalhou numa prisão. De 2017 a 2020, se não me engano, no Presídio Feminino de Santana, em São Paulo. E, apesar de uns deslizes, a produção realmente reproduz a conduta dos agentes penitenciários. Só quem conviveu com eles tem o olho clínico para perceber alguma derrapada. A segunda coisa que me chamou atenção foi a escolha do elenco, a caracterização e a atuação. Se o roteiro falha em aprofundar qualquer coisa que possa acontecer, os atores conseguem tirar leite de pedra — com uma exceção aqui e ali. Mesmo Marina Ruy Barbosa, que interpreta Suzane von Richthofen, consegue encarnar bem a personagem, que é uma pessoa real com inúmeros registros em vídeo. Ela sensualiza um pouco demais, sendo que acredito que a verdadeira se mostrava mais sonsa diante das câmeras, e a prótese dentária ficou exagerada. Tanto que, no anúncio da segunda temporada, ela aparece com uma prótese mais ajustada. Os mais assustadores na caracterização, para mim, são o veterano Anselmo Vasconcelos, que interpreta o asqueroso estuprador em série e médico especialista em reprodução humana Roger Abdelmassih, e o novato (para mim) Lucas Oradovschi como Alexandre Nardoni, condenado por jogar a filha ainda viva da janela do apartamento em que morava. Eu não conhecia nem lembrava das entrevistas ao programa do apresentador Gugu então não tenho comparativo para falar da Letícia Rodrigues como Sandrão, que era namorada da Matsunaga antes de chegar a Suzane e tomar ela para si mas por ver uma entrevista da atriz vi o quão diferente da personagem. Porém, a energia captada na atuação de Carol Garcia é impressionante: ela faz a fria Elize Matsunaga, que mata o marido — que ameaçava se separar dela e tomar sua filha — e o esquarteja com a precisão de um bom açougueiro desossando um boi. Bianca Comparato interpreta uma evasiva Caroline Jatobá, que parece não saber ao certo o que está fazendo presa e mostra toda sua fragilidade como criminosa que, entre as próprias detentas, é considerada uma “coisa”. Isso a série não fala, mas aprendi lá no Presídio de Santana:  uma “coisa” é alguém que cometeu um crime tão errado que até os demais presos o repudiam. Em muitos casos, esse criminoso pode ser perseguido, apanhar e até morrer lá dentro. Eu dava aulas no presídio e, certa vez, usei o termo “coisa” me referindo a alguém — o que já não era adequado — e elas me explicaram que eram crimes que elas mesmas não aceitavam, e matar criança certamente colocava Carolina nessa categoria. O já conhecido Felipe Simas vive Daniel Cravinhos, e o irmão Cristian é interpretado pelo, para mim, novato Kelner Macedo. Este último causou alvoroço por protagonizar uma cena em que Cristian se envolve sexualmente com outro detento e usa calcinha. O verdadeiro Christian se pronunciou na internet dizendo que isso era mentira. Tudo bem meter paulada na cabeça dos pais da namorada do irmão; usar calcinha e se relacionar com um gay na prisão, jamais. O rapaz com quem houve o relacionamento na cadeia se pronunciou, e Ulisses mostrou uma carta como prova. Nessa briga eu fico do lado da fofoca. 

            E aqui chegamos a uma das críticas mais frequentes à série: ela teria dado notoriedade excessiva aos criminosos, transformando-os em celebridades a serem idolatradas e seguidas nas redes sociais — ainda mais agora que praticamente todos estão soltos, seja por terem cumprido a pena, seja em regime semiaberto. Alguns até estão se beneficiando do momento, seja com processos, seja reativando perfis, seja vendendo coisas. Particularmente, não acho que a série tenha glamourizado ninguém; o problema são as pessoas assistirem, já saberem da história e irem seguir os perfis. A série não tem culpa se o público se sente atraído e quer ter essas pessoas como amigas, mesmo que virtuais. O brasileiro tem uma propensão a adotar um bandido de estimação. E, quando vira seita, então, esse bandido pode tentar violar a tornozeleira eletrônica com ferro de solda para fugir — e muita gente ainda não acredita que isso aconteceu, mesmo com tudo registrado e a perícia confirmando o equipamento violado.

            Assim como filmes de terror, true crime não me agrada muito. Até levo de boa crimes ficcionais — adoro um romance policial ou histórias de detetives e mortes. Quando a produção se baseia em fatos reais, já não me sinto tão animado a assistir ou ler. Quando trabalhei dando aula para detentas, eu nunca perguntava qual crime elas tinham cometido; era um presídio feminino, e vez ou outra uma comentava algo sobre o caso. Éramos orientados a agir da forma mais discreta possível para que elas se sentissem confortáveis no ambiente de estudo. Ainda assim, ouvi coisas escabrosas. Sem citar nomes, uma me contou que meteu a faca na cabeça do marido durante uma briga porque ficou nervosa e não achou que fosse machucar; só percebeu quando jorrou sangue, e aí entrou em desespero porque amava aquele homem e não conseguiria viver sem ele. Por sorte, foi superficial e nem virou boletim de ocorrência. Ela estava presa por tráfico. Outros casos, quem sabe, conto um dia em alguma crônica.

            Tremembé apostou num estilo de produção que antes só aparecia em programas de baixo orçamento na televisão aberta, mas, feita por uma gigante como o Prime Video, ganha proporções de superprodução. E vale a pena, sim. Sei que não citei outros personagens da série, mas até os coadjuvantes estão muito bem em suas atuações. Querendo ou não, é um resgate de uma brasilidade que, por mais torta que seja, compõe uma dimensão da nossa cultura. Crime pode ser visto como entretenimento, sim, porque cai na boca do povo — e o povo transforma tudo em fofoca. Seja o que for. Ouso dizer que foi a produção nacional mais comentada do semestre. E, mesmo que a estreia tenha sido no dia 31 de outubro, ainda reverbera nos noticiários e nas redes sociais.





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