segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Frankenstein - Audácia necrófila...

 




Frankenstein - Audácia necrófila...


            Frankenstein figura naquele panteão de criaturas do terror clássico que todos herdamos quase que por osmose através da cultura pop, e isso pode gerar uma falsa familiaridade. Principalmente se for como eu: alguém que não leu o texto original da Mary Shelley — uma vergonha, eu sei, mas se eu elencar tudo o que não li ainda vou cavar um buraco e me enterrar, aí sim haverá motivo de vergonha. Além disso, essa grande escritora publicou o livro quando contava apenas 18 anos, numa época em que não davam crédito a autoras mulheres, e ainda conseguiu escrever uma obra que se fixou como clássico e deu origem ao que chamamos hoje de ficção científica. A mulher conseguiu uma façanha digna mesmo o povo achando impossível que alguém tão jovem, e mulher, produzisse algo desse tamanho. E nem vamos nos aprofundar muito no machismo da época que ela enfrentou. Ela era capaz, foi lá e fez — e muito bem feito.

            Para além dos filmes vagamente inspirados, que também deram pano para o imaginário da criatura de Frankenstein, eu admito que não era um monstro pelo qual eu tinha muito apreço. Quando criança, eu achava boba a ideia de reanimar um corpo com um raio de tempestade, ainda mais um corpo feito de retalhos de mortos. Eu cresci no interior; sempre matavam uma galinha no fundo de casa, ou cevavam um porco para o Natal, e eu via meu avô e meu tio estripando os bichos. Sabia que costurar partes num corpo morto era inviável, e a decomposição é um fato. Depois veio a escola: por mais que muitos não prestassem atenção, eu gostava de estudar, e os avanços científicos que fui aprendendo me deixavam mais cético com essa história em particular. Com o tempo parei de ser tão literal e entendi que a obra foi escrita numa época em que as descobertas estavam ainda se iniciando — e que existe algo essencial na literatura além da verossimilhança, que é a liberdade poética. Afinal, qual monstro passa realmente pelo crivo da ciência hoje? Mas como metáfora, todos funcionam bem.

            Para além do Boris Karloff em 1931 — que confesso só ter visto em trechos — tenho dois exemplares que me ajudaram a ter mais simpatia pelo “Prometeu moderno”. O primeiro foi o filme Frankenstein de Mary Shelley (1994), com Robert De Niro como a criatura e Kenneth Branagh como o criador inconsequente e também diretor do filme. Até então, era a obra que se intitulava mais fiel ao original. Mas lembra lá do começo? Eu não li o livro… Então não sei quão fiel realmente é. De qualquer modo, o De Niro deu à criatura uma aspereza que beirava a bestialidade. E fui perceber que ela não era tão bestial assim somente na segunda referência: a série Penny Dreadful (2014–2016), que surgiu do desastre que foi A Liga Extraordinária, adaptação da HQ de mesmo nome do renomado Alan Moore. A adaptação flopou, e então John Logan foi lá e fez Penny Dreadful, praticamente com a mesma ideia, mas jogando sua criatividade e conseguindo o sucesso que o filme anterior não teve. Ali temos a criatura mais sensível e sartriana até então — muito bem interpretada por Rory Kinnear. Quando, num encontro com outra personagem, ele declama poemas, é algo de tal sensibilidade que só uma alma humana alcançaria. E o grande questionamento de Frankenstein é esse: ele criou uma “coisa” com alma ou sem alma humana?

            E então chegamos a Guillermo del Toro e sua produção de arte incomparável. São tantos detalhes nos cenários, nas vestimentas, na maquiagem e na caracterização da criatura que os olhos quase não conseguem captar tudo. É uma explosão de beleza gótica que esbanja cuidado e perfeição. Se no filme de 1994 temos um De Niro áspero, e na série um Kinnear sensível, nesta obra de 2025 temos Jacob Elordi — que eu achava que não daria conta do recado — entregando uma criatura que chega a um meio-termo. E, dos três, sob a direção artística de Del Toro, é o mais grotescamente belo, mesmo sendo uma colcha de retalhos humanos. Mesmo o Victor Frankenstein de Oscar Isaac está um passo à frente dos outros atores que interpretaram o papel. No filme de 1994 havia uma neutralidade ao estilo de Branagh; na série, o Harry Treadaway tinha uma carinha de “bonzinho demais” para ser realmente o monstro da história. Isaac é perfeito. Seu misto de atuação visceral e cruel, somado àquele charme de galã “feio” e malicioso e à sua estatura mais baixa comparada à de Elordi, dá exatamente a potência e megalomania necessária à ambição do personagem — e desculpa se usei algum estereótipo ofensivo, mas para explicar o efeito da atuação do Isaac precisei recorrer a esses adjetivos.

            Contudo, preciso admitir: talvez por não ser meu monstro favorito, tive que assistir em três parcelas, em dias diferentes. O streaming permite isso, então não perco tempo com o que não me prende e, como tenho ansiedade — e ela anda um pouco alta esses dias, afinal estou num lugar de que não gosto e ainda por cima com milhões de coisas que não estão acontecendo; segundo os astros tudo muda até dia trinta, estou torcendo — se sinto algum desconforto que ameaça virar gatilho, eu paro. E, sabendo disso, tento não ser injusto e volto a insistir. Isso aconteceu com Pluribus: me incomodei já nos primeiros vinte minutos e desisti, precisei ver a Isabela Boscov falando bem no YouTube para continuar. E foi uma grande surpresa. Olha eu misturando assuntos… logo posto algo sobre Pluribus.

            Voltando a Frankenstein: eu realmente quase desisti. Não estava me conectando, mas na terceira tentativa engatou e comecei a gostar da história. E, como disse, tudo é lindo na direção de arte. Uma cena me chamou muita atenção — acho que foi daí que deslanchei: a “confecção” da criatura no laboratório de Victor. Para quem não sabe de outras resenhas minhas, eu odeio terror, principalmente aqueles que picam, fatiam, cortam, dilaceram, moem, trituram e liquidificam pessoas. Mas a sensibilidade de Del Toro fez aquela cena, que parecia um açougue humano onde o açougueiro escolhia os cortes, se tornar de uma beleza grotesca que me deixou de boca aberta. É quase transgressora... É nojenta e bela ao mesmo tempo. Assustou-me também a audácia necrófila — me pegou de surpresa. É como se ele retratassse um fascínio e um asco simultâneos pelo que a morte causa, e ver que somos só carne pode gerar boas reflexões sobre a própria finitude. Finalizo aqui o que queria falar sobre Frankenstein. No fim, realmente gostei da experiência de ver mais uma adaptação de Mary Shelley na visão de um criador tão sensível quanto Del Toro.

        Um Ps: Tem mais uma cena que achei linda que é o sonho de Victor um anjo, acho que o Miguel, aparecendo para o aterrorizar. E todo o simbolismo de cores envolvido daria outra análise que sinceramente não dá no momento.




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