domingo, 15 de outubro de 2017

Mãe! - Dantesco, alegórico e belo

Mãe!



         Confesso que tinha escrito uma coisa mais suntuosa e pedante e de última hora resolvi reescrever.
        
Gostei do filme. E ouvi o buchicho da plateia no cinema e percebi que alguns que não sabiam o que expressar outros simplesmente detestaram. E uma situação me chamou atenção. Ao meu lado no cinema uma garota com deus 18(?) anos e sua namoradinha se contorciam, bufavam, faziam muxoxos de indignação, sofreram com as cenas o tempo todo e ao fim uma solta “Eles gastam dinheiro com cada coisa”. Garanto que elas sentiram mais o filme que eu. E não perceberam que as emoções que sentiram foram alcançadass pelas intenções do diretor e roteirista Darren Aronofsky. Por vezes esquecemos que o cinema deve nos direcionar a uma emoção, ou várias. Queremos histórias redondas com começo, meio e fim e fáceis de entender. E “Mãe!” tem essa estrutura. Porém, é uma grande alegoria ou metáfora. Elementos bíblicos são colocados diante de nossos olhos. E o obvio não aparece pelo menos até metade do filme.
        
Particularmente fiquei muito intrigado tentando entender e captar as metáforas. E ao mesmo tempo instigado em tentar entender a relação da personagem de Jennifer Lawrence com o de Javier Bardem. Do meio em diante é mais fácil. Antes, porém, tudo é muito confuso, e isso não é ruim.
         A superfície da história é de um casal que mora numa casa afastada da cidade e o dia passa tranquilamente. A mulher é quem restaurou a casa sozinha depois de um incêndio. Apesar de não estar completa, as finalizações estão em andamento. E num determinado momento chega um homem estranho, Ed Harris, e logo em seguida, sua esposa, Michelle Pfeiffer e consigo um emaranhado de acontecimentos aonde toda a paz vai embora e a “Mãe” desamparada é vilipendiada de várias formas. Até o desfecho onde não aceitando mais os maltratos, vai até as últimas consequências. Não ouso escrever mais que isso, seria spoilers.
        
Tudo correria numa estranheza não fosse o que está no subtexto. Obviamente que a relação do casal é Deus/Natureza ou ainda o Divino feminino que é relegado e enclausurado pelo patriarcalismo. O personagem “Ele” chama o tempo toda a “Mãe” de “minha deusa”. A divindade masculina não cria do nada. Precisa do amor da divindade feminina, ou da Natureza. E esta não é tão complacente com os seres humanos que acabam por abusar de sua hospitalidade. Nítida referência de como destruímos tudo o que a Mãe Natureza levou milhares de anos para construir.
O casal que parece primeiro é Adão e Eva. Perceba que em um momento o homem está mal no banheiro e há uma ferida em sua costela e é somente depois disso, no dia seguinte, que sua esposa chega. E com eles o drama e a tragédia de seus dois filhos, um “Abel e Caim”. E a partir disso chegam mais pessoas e todos com tanta falta de respeito pela dona da casa que num acidente, que remete ao dilúvio bíblico, ela enxota todos de lá. Novamente a casa fica calma e tudo parece ficar bem. Até que a Mãe fica gravida e seu esposo tem uma nova inspiração para um poema, ele é escritor. Ou podemos antever o Antigo Testamento, o primeiro “sucesso” e agora ele se inspira para escrever o Novo Testamento.
E o filho aparece, que mais que depressa a figura do marido/Deus entrega a uma turba de pessoas que invadiram a casa com o intuito de primeiro admirar seu trabalho e depois começam a destruir tudo que há por perto, em função da adoração que eles têm pelo marido escritor, para desespero da Mãe. Destroem sob a complacência do marido tudo o que há na casa e o filho que a Mãe acabou de parir é entregue ao grupo raivoso. Uma cena dantesca, um atordoante desenrolar de acontecimentos que transformam a casa num campo de batalha, uma miscelânea de situações simbólicas que acabam num nefasto banquete em que pedaços do recém-nascido é dado como hóstia numa missa. Tudo tem um motivo, tudo tem uma explicação. E fica uma pergunta: o que estamos fazendo com nossa casa por nossa divindade permitir?

        
As atuações são instigantes. A passividade indignada da Mãe, Lawrence, que é desrespeitada o tempo todo, o que nos causa um grande incômodo, e a complacência com os convidados folgados que o marido, Bardem, demonstra, que nos deixa mais incomodados ainda, nos leva ao pilar de sustentação do filme. Ambos arrasam com suas camadas interpretativas. Quando o homem, Harris, e a mulher, Pfeiffer, chegam vemos que temos monstros em tela. Há tempos que não via uma Michelle Pfeiffer tão bem em um papel quanto está neste filme. É maldosa, sensual, mesquinha e parece ter rancor da Mãe.
 Sempre achei que ela nunca foi valorizada como deveria. E o mesmo para Harris. Se mostra frágil e debilitado no ponto certo. O roteiro é de uma consistência bem interessante, mesmo que nos deixe com pontos cegos por tempo demais. E o melhor, a fotografia é bem bonita, estranhamente realista e limpa. Lawrence nunca está descabelada ou desarrumada, pelo menos antes do desfecho. Sua pele sempre perfeita, seu rosto sem vincos de idade, é uma bela personificação da divindade feminina. Já Javier é grosseirão, mais velho e rude, um homem que não liga para a esposa que tem. Sabe que se essa for embora, apesar de nunca permitir que saia de casa, ele consegue outra. Então aproveita tudo o que ela pode dar, tudo mesmo, até a última fagulha de amor.


        
Como vi no cinema, muitos não entenderão outros não gostarão, ou os dois. Não é um filme fácil, não é um filme para o público médio. Apesar de ter ido uma semana depois da estreia e o cinema estar lotado no último horário da noite. Eu gostei do filme e muito. Vi um lirismo difícil de alcançar e, apesar das situações angustiantes, tudo traz uma motivação. Há tensão mas o filme não é terror nem suspense como o classificaram. Ele tem mais sentido que muitos outros filmes de bilheterias grandiosas e roteiros mastigados dos últimos meses. 












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