terça-feira, 23 de julho de 2019

Crônicas de São Francisco


Crônicas de São Francisco




         Neste julho eu me surpreendi, e isso é vergonhoso, ao descobrir que Olympia Dukakis está viva. Por algum motivo minha memória a havia matado na década retrasada. Somente a internet em conjunto com a Netflix reparou esse lapso com a série “Crônicas de São Francisco” que comecei assistir assim que pude. Percebe-se claramente que Dukakis está bem velhinha e isso ajuda na transposição e composição da personagem. De qualquer forma, achei o primeiro episódio bem morno, quase desinteressante. Até que, simultaneamente, a Netflix lançou as outras temporadas anteriores e fui pesquisar um pouco mais sobre elas. Descobri que era uma série baseada numa obra literária de relevância social grandiosa nos EUA. Escrita por Armistead Maupin, que ainda é vivo, em forma de folhetim em um jornal da cidade de São Francisco, daí o nome, foi muito relevante para dar visibilidade a algo que se tornara a essência e a tendência na cidade, bem antes de muitos reconhecerem e muitos queriam negar ou até fingir que não existia: a comunidade LGBTQ+.
Maupin, se mudando para São Francisco vindo de um estado e estilo de vida conservador consegue sair do armário e como já trabalhava com escrita aceita a oportunidade de escrever para um jornal. Segundo o próprio, inspirado em si mesmo e em várias outras pessoas que conheceu, formulou personagens emblemáticos para a cultura LGBTQ+. O sucesso foi tamanho que o folhetim se tornou livro e deu sucessão à vários volumes, e, ao todo três adaptações televisivas. A última, agora a quarta, produzida pela Netflix neste ano, as demais por outras produtoras diversas respectivamente em 1993, 1998 e 2001. Na sua primeira edição a série revolucionou em várias questões não só ligada à sexualidade como também com a nudez na televisão e empoderamento de minorias e o uso de drogas de forma “recreativa”, algo ainda sequer falado por aqui pela mídia.
        
Não li os livros e somente com a série já percebi a influência que teve em várias outras produções que vieram depois: “Queer as Folk”, “Looking”, “The L Word” entre outras. Basicamente, a história se resume em mostrar uma excêntrica dona de uma espécie de condomínio de apartamentos, no número 28 da fictícia rua Barbary Lane, e como os seus inquilinos se relacionam, cada um com suas particularidades, em uma cidade exuberante e empolgante que vive os anos da liberação sexual em 1976, pelo menos a primeira temporada.
As demais acompanham as aventuras e desventuras do grupo em outros momentos; quase um novelão se houvesse uma continuidade de produção. As séries baseadas em Maupin foram alvo de críticas conservadoras ao longo do tempo, principalmente a primeira temporada, só para variar. Os personagens são cativantes e nos fisgam com suas contradições. É absurda a quantidade de coisas “moralmente erradas” que fazem e não conseguimos deixar de gostar deles. Mary Ann Singleton (Laura Linney em todas as temporadas) é a personagem mais cativante, em minha opinião. Mulher cisgênero, heterossexual, vinda do interior do país para iniciar uma jornada de autoconhecimento numa cidade grande em busca do amor. Contudo se depara com as dificuldades da vida adulta em um ambiente hostil onde a “concorrência” e a falta de comprometimento afetiva são ostensivas.
A típica desconexão que um centro urbano causa nas pessoas. Contudo, outros personagens são tão instigantes ou odiosos, no bom sentido de uma obra, a ponto de realmente acontecer apego. Não é uma das histórias mais brilhantes, contudo, supre a função de entreter, e de levantar alguns questionamentos a respeito do universo LGBTQ+. Anna Madrigal (Olympia Dukakis, também em todas as temporadas) é a alma e elo que conecta a maioria dos personagens. Uma trama misteriosa com seu passado além dela ser uma mulher transgênero heterossexual, são motes para desenrolar o enredo em vários momentos.
Ao longo das séries vamos descobrindo camadas e mais camadas dessa personagem, que talvez seja uma das mais interessantes de todos os tempos. Descobrir quem Anna Madrigal é ao longo dos episódios é simplesmente delicioso. E por causa dela temos pequenas preciosidades como, por exemplo, a Mãe Mucca (Jackie Burroughs) que faz parte de seu passado obscuro. Tirando alguns exageros, conseguimos uma história coerente, as três primeiras temporadas são simultâneas, a última já ocorre vinte anos depois do fim da terceira. E justamente por ser a mais recente é a que mais sofre uma pasteurização de conteúdo, mesmo e apesar de ser a que mais retrata a diversidade sexual. Contudo o que mais me desconectou do restante das produções, segundo novamente a minha opinião, foi o fato de uma personagem de quase trinta anos se comportar com todas as crises de alguém de quinze anos, a filha adotiva de Mary Ann, Shawna (Ellen Page).

        
As temáticas LGBTQ+ são abordadas de forma bem orgânica e natural, sem julgamentos fáceis, ou até desprovidos deles. Ninguém é apresentado como aberração. A não ser pelas atitudes e ações de “ecos” da realidade que se percebe ser as vozes com a qual a comunidade sempre lutou para se garantir e ganhar seus direitos. Não há como não retratar o preconceito que, interessantemente, vem de pessoas/personagens de fora de São Francisco. Aqui a cidade se mostra um porto seguro onde gays, lésbicas ou trans, são simplesmente o que realmente são: pessoas. Ninguém é visto como “pervertido”. Pode haver contradição em suas atitudes, mas todos como pessoas vivem suas particularidades sem julgamentos. E ao mesmo tempo nos é colocado o modo de vida de cada um, escolhas boas ou ruins. O personagem Michel “Mouse” Tolliver (Marcus D’Amico/Paul Hopkins/Murray Bartlet, houve a mudança de intérprete em diferentes temporadas) é o gay romântico que não consegue deixar de ser puta/galinha e fode com tudo quase todas as vezes e, em outras, é literalmente fodido por seus parceiros. Contudo nada o faz desanimar de uma boa safadeza e ao mesmo tempo da tentativa de ser feliz com alguém. E é com ele que temos um dos textos mais emblemáticos sobre o orgulho de ser gay, sua famosa carta aos pais onde revela sua sexualidade, praticamente um manifesto que até hoje é celebrado nos EUA.
         É interessante mencionar também que a Netflix disponibilizou um documentário sobre o autor do livro. E, em algum momento do documentário, ele mesmo se identifica com “Mouse”, a gay puta romântica. Contudo isso não é mostrado como algo negativo e sim como uma mera condição de um ser humano que possui várias possibilidades de escolha e se aproveita de todas que pode ter. É à luz do documentário “The Untold Tales of Armistead Maupin” que seus folhetins não ficaram apenas esbarrando em amenidades e ficção, ele reportou e mostrou o que foi a dizimação de centenas de homens gays: o surgimento da AIDS. As séries só insinuam isso no fim da terceira temporada e na última temporada temos um “Mouse” que convive com a doença há anos. Somente com o documentário é que algumas coisas ficam mais claras para nós brasileiros, pois se não conhecemos nem nossa história, imagine a história de outro país.
        
É incrível que temáticas abordadas lá em 1976 na obra de Maupin e revividas em produção televisiva, primeiramente em 1993, são tão atuais aqui no Brasil. Lembro que apesar do primeiro beijo lésbico ter sido em 1963 com a novela “A calúnia” da TV Tupi só fomos ter um beijo entre dois homens em uma novela de grande repercussão nacional em 2014, “Amor à Vida” da Rede Globo, e com um dos atores mostrando nitidamente um desconforto e falta de química, e profissionalismo, com o outro ator que conseguiu se empenhar mais na cena.
        
As minorias são ainda mal representadas no Brasil. Vivemos dilemas e contradições com o atraso de 50 anos, em alguns casos até de 500. Parece que ao invés do cidadão comum médio evoluir ele está retrocedendo. E nossos produtores culturais que estão à frente e têm o poder de determinar o que a população irá assistir parecem não querer um avanço em várias situações sociais. Tudo que é evolução parece ser tratado como algo alienígena. Existe uma falsa sensação que o diferente é errado e deve ser abafado, contido e escondido. Contudo, por características bem peculiares à nossa cultura, nada é realmente abafado e tudo existe desde que ninguém fale e tudo bem.
        
Uma “passada” por Barbary Lane é necessária para todos que valorizam ou querem entender um pouco mais a cultura e o orgulho LGBTQ+ no mundo. Se outros países estão mais avançados em algumas questões só temos que aprender e tirar o melhor proveito de suas lutas. A reflexão que o outro teve sempre deve servir para nos enriquecer e nunca para nos blindar. E suscitar essa discussão com uma obra de entretenimento é mais do que válido, é essencial.